No
meio de uma crise de identidade jornalistas reúnem-se em congresso. Maior
inquérito de sempre aos jornalistas portugueses revela longas jornadas de
trabalho, salários baixos, condicionalismos à autonomia e alguma vontade de
virar costas à profissão.
Portugal
perdeu quase dois mil jornalistas nos últimos dez anos. E dois terços dos
actuais titulares de carteira profissional já pensaram pelo menos uma vez na
possibilidade de abandonar a profissão. Abalados por uma crise de identidade,
que deslocou a ênfase na produção das notícias para a distribuição na Internet,
os jornalistas reúnem-se a partir de quinta-feira, até domingo, no Cinema São
Jorge, em Lisboa.
Não
há congresso há 18 anos. Fazê-lo foi uma promessa proferida por Sofia Branco
durante a corrida à direcção do Sindicato de Jornalistas. Já lá vão dois anos.
O sindicato não avançou sozinho. Envolveu o Clube de Jornalistas e a Casa da
Imprensa. As inscrições já fecharam. Há uma lista de 700 nomes. E a conferência
inaugural, às 18h30, cabe a Michael Rezendes, prémio Pulitzer 2003 pelo
trabalho no The Boston Globe, que inspirou o filme Spotlight.
"Esperamos
que o congresso sirva para que os jornalistas reflictam sobre os seus
principais problemas”, declarou à Lusa Maria Flor Pedroso, presidente da comissão
organizadora. “A minha expectativa é que se reflicta e que se decida”, disse
Sofia Branco ao PÚBLICO. “No fim, devemos ter uma folha A4 com medidas
concretas.”
“É
preciso separar as águas”
Joaquim
Fidalgo, jornalista e professor da Universidade do Minho, contou a um amigo que
irá estar num painel a falar de ética e o amigo espantou-se: “O Titanic a
afundar e tu a tocar violino!”, “Isto está a ir abaixo porque está a haver uma
misturada”, entende aquele fundador do PÚBLICO. Há os blogues, as redes
sociais, os comentários em cima da informação, os conteúdos patrocinados. “É
preciso separar as águas”, adverte. “Sucedâneos de jornalismo não são
jornalismo. Não pelo rótulo, mas pela substância.” O jornalismo exige saber. E
atenção, ética e deontologia.
Os
resultados do maior inquérito feito aos jornalistas portugueses – a apresentar
ao congresso no sábado – mostram o descontentamento: 64,2% já pensaram, pelo
menos uma vez, em virar as costas à profissão. Porquê? Pelo baixo rendimento
(21%), a degradação da profissão (20,4%) e a precariedade (14,3%).
Os
jornalistas têm escolaridade superior à média (79,6% com licenciatura), mas um
terço não possui um vínculo laboral sólido, três quartos não vêem progressão de
carreira há mais de quatro anos e, no final de cada mês, mais de metade (57,3%)
leva para casa menos de mil euros. Trabalham longas horas. A maioria mais de 40
por semana. Muitos afligem-se para conciliar a vida profissional com a vida
pessoal: 46% considera difícil, muito difícil ou extremamente difícil fazê-lo.
Quase metade não tem relação conjugal (47,8%). Mais de metade não tem filhos.
Jornalistas
com salário mínimo
“Há
a ideia que somos uma elite que ganha muito bem e isso não é verdade”, sublinha
Sofia Branco. A média salarial é 1113 euros líquidos. “A margem de pessoas que
ganha menos de mil euros [57,3%] é significativa”, lamenta. Há 21,8% a auferir
entre 501 e 700 euros e 11,6% menos de 500. “Esta é uma profissão qualificada.
As pessoas entram com licenciaturas e continuam a fazer formação. Muitas fazem
mestrados, pós-graduações. Não acho ‘normal’ que haja jornalistas a ganhar o
salário mínimo. Acho chocante que isso seja pago a alguém que tem a missão de
informar”, enfatiza.
O
estudo – conduzido por uma equipa do CIES/ISCTE-IUL e intitulado Os
jornalistas portugueses são bem pagos? – parte de um inquérito às
condições laborais composto por 78 perguntas. Entre 1 de Maio e 13 de Junho de
2016, responderam perto de 1600 jornalistas (1494 inquéritos válidos).
“Tínhamos
algumas ideias sobre o que poderíamos encontrar, algumas foram confirmadas,
outras desfeitas”, conta Miguel Crespo, da equipa de investigadores. “Acabámos
por concluir que não há assim tantas diferenças entre homens e mulheres”, exemplifica.
Não nota diferença nas horas de trabalho, na dificuldade de gerir a vida, nem
nos salários baixos ou médios, apenas nos mais altos.
Longe
vão os tempos em que as redacções eram um exclusivo masculino. As mulheres têm
estado a ganhar terreno. Em 2016 representavam 41% dos titulares da carteira
profissional, mas os homens continuam a dominar os lugares de topo. Ainda na
quarta-feira o Jornal de Negócios publicou um artigo a chamar a
atenção para o facto de na direcção de 16 jornais e revistas ter encontrado 50
directores e oito directoras (esqueceu-se da directora de arte do PÚBLICO).
Sofia
Branco acredita que as discrepâncias de género são maiores do que este
inquérito mostra. Ocorre-lhe um levantamento feito na Lusa em 2015 que indicava
disparidades até superiores à média nacional. “As pessoas muitas vezes não
percepcionam estas questões”, diz. “Há falta de treino.”
O
estudo desfaz outras ideias feitas. Prova que há algum espaço para renovação
geracional (6,6 dos jornalistas têm menos de 25 anos) e que é grande o esforço
de formação continua, o que, na opinião de Miguel Crespo, revela “uma classe
profissional dinâmica, interessada em evoluir”.
“Para
quem está de fora, é fácil ver um erro e embarcar numa teoria da conspiração”,
concebe ainda Miguel Crespo. Os jornalistas até resistem bem às pressões
externas. Sentem-se é afectados por pressões internas: “31,5% dizem ser pouco
ou nada autónomos em relação às decisões das chefias, e 41% em relação às
decisões das administrações”. A agenda toma-lhes demasiado tempo. É esse o maior
condicionamento à sua autonomia. Seguem-se as condições de trabalho.
“Alguma
coisa tem de mudar aqui – este não pode ser o único caminho porque este caminho
está a levar-nos à autodestruição”, considera Sofia Branco. "Eu acho que o
mundo está em crise de identidade, os jornalistas fazem parte do mundo, o mundo
está constantemente a mudar e, portanto, há aqui um processo de adaptação”,
entende Flor Pedroso. “A crise de identidade é também uma crise de
credibilidade” e a responsabilidade, julga Fidalgo, “não é só dos jornalistas,
é também das empresa, que também têm obrigações éticas".
Ana
Cristina Pereira – Público – Foto Rui Gaudêncio
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